Sombra do pavor (Le Corbeau, 1944) é um filme de suspense com poucos pares na história do Cinema, porque ao invés de se restringir a tensões individuais ele abrange toda uma paranoia social, como O Homem de palha (The Wicker man, 1973, de Robin Hardy), só que dez vezes mais obscuro.
Antes de dirigir suas obras-primas, O Salário do medo (Le salaire de la peur / The Wages of fear, 1953) e As Diabólicas (Les diaboliques / Diabolique, 1954), o francês Henri-Georges Clouzot já criara grandes obras de suspense, como Crime em Paris (Quai des Orfèvres, 1947) e esta aqui. Le Corbeau por sinal lhe custou um hiato forçado de três anos por ter feito esse filme sob uma produtora alemã e pela visão pouco entusiástica de seus conterrâneos.
A história ocorre numa cidadezinha francesa não identificada. O que começa como uma série de pequenas intrigas, o relacionamento de um médico com a esposa de outro homem e algumas frustrações pessoais, logo se transforma num nervosismo coletivo quando os cidadãos começam a receber cartas anônimas d’O Corvo, algumas delas com acusações gravíssimas. Já diria W. Somerset Maugham sobre as cartas anônimas: é “um dos prazeres da vida na França”. Inclusive, o roteiro pode ter sido baseado num evento real, ocorrido em Tulle, no ano de 1917.
Das pessoas mais simples ao prefeito, todos têm sua intimidade exposta contra vontade e então famílias se rompem ou as pessoas viram umas contra as outras. Mas o principal alvo dessas cartas é o doutor Rémy Germain (Pierre Fresnay), acusado de auxiliar abortos no passado e, mais recentemente, de manter relações sexuais com Laura (Micheline Francey), a bela esposa do diretor do hospital onde Germain trabalha, o velho Michel Vorzet (Pierre Larquey).
Para complicar ainda mais a vida do doutor, Denise (Ginette Leclerc), coxa e hipocondríaca, tenta a todo custo seduzi-lo. Ela, Rémy e Laura formam então um estranho triângulo amoroso, o qual está mais para triângulo – por ser pontiagudo – do que para amoroso.
E a situação foge de fato de controle quando uma das cartas é endereçada a um portador de câncer terminal, a revelar-lhe a verdade sobre seu estado de saúde irrecuperável. Esse homem em seguida se suicida e sua morte serve de estopim para a iminente paranoia a estabelecer-se sobre a cidade.
Em seu enterro uma nova carta anônima, endereçada ao povoado, cai do carro fúnebre. Este é o ponto alto do filme, esta cena, onde nessa cidade em que todos são mais ou menos aleijados, seja física ou moralmente, as pessoas demonstram grande pavor dessa carta a ponto de passarem longe dela. Mais do que o pedaço de papel, as palavras ali contidas tornam-se uma arma e compõem a principal fonte de terror de Le Corbeau.
A nova carta joga a culpa do suicídio sobre uma das enfermeiras do hospital, cuja reputação também não é das melhores. Põe-se assim em marcha uma louca perseguição, na qual a mulher é vista correr de uma multidão raivosa. O curioso é que essa multidão não se vê; apenas se ouvem seus gritos, seus passos, e com isso sentimos sua presença próxima.
Porém, mesmo depois da prisão da enfermeira, as cartas continuam a assombrar a cidade. Quem seria o verdadeiro autor dessas cartas? E por que razão as escreveria?
Assiste ao filme para saber, porque vale a pena. Além do suspense crescente, Sombra do pavor é pontuado de interpretações convincentes, uma direção segura, e um roteiro com um fino senso de humor, embora pessimista.
Ficha técnica:
Título: Sombra do pavor / The Raven / Le Corbeau;
Direção: Henri-Georges Clouzot;
Elenco: Pierre Fresnay, Ginette Leclerc, Micheline Francey, Héléna Manson, Pierre Larquey…;
Roteiro: Henri-Georges Clouzot , Louis Chavance;
Cinematografia: Nicolas Hayer;
Edição: Marguerite Beaugé;
Música: Tony Aubin;
Produção: René Montis, Raoul Ploquin;
Ano: 1944;
País: França;
Gênero: Suspense.
