Muitas vezes chamado de Hitchcock francês, Henri-Georges Clouzot é também um mestre em criar suspense. Quem já assistiu a filmes como O Salário do Medo (The Wages of Fear / Le salaire de la peur, 1953) e As Diabólicas (Diabolique / Les Diaboliques, 1955) sabe do que este diretor é capaz.
A diferença entre eles é que Hitchcock trabalha com um suspense estritamente psicológico, enquanto Clouzot aprofunda o suspense emocional. Quando nos filmes daquele algo é revelado, essa revelação contribui para o andamento ou resolução da história; já neste não há tal necessidade, pois a revelação pode surgir apenas para detalhar o quadro humano que é posto em cena, como vemos em Crime em Paris (Quai des Orfèvres, 1947).
Situado em Paris, no ano de 1946, a película mostra a história de Marguerite (Suzy Delair) – conhecida pelo nome artístico de Jenny Lamour –, uma ambiciosa e atrevida cantora que não receia usar seus atributos físicos para conquistar a fama, e seu marido, Maurice (Bernard Blier), um pianista ciumento e passional. Ambos compartilham a amizade da fotógrafa Dora (interpretada com muita elegância por Simone Renant), de quem Marguerite suspeita estar secretamente enamorada de seu marido, embora a realidade seja outra.
Nada é mais estranho do que a visão de Jenny comparada à de Maurice. O leitor pode até se perguntar o que os dois, haja vista serem tão diferentes, fazem juntos – coisa que nunca me perguntei com qualquer casal de Alfred Hitchcock. Há uma cena que faz o contraste entre os personagens, a cortar a imagem dela para ele, e é hilária.
Esta é Jenny:
E este é Maurice:
O roteiro reserva bastante tempo para a exposição dos personagens, suas personalidades, suas relações e seus ambientes particulares. O suspense começa quando Jenny decide encontrar-se com um produtor mal-caráter às costas de seu esposo. Maurice descobre o plano e tomado de furor monta todo um estratagema para assassinar esse produtor. O problema é que ele encontra o produtor já morto, seu carro é roubado e seu álibi parece ir por água abaixo.
Em seguida ouvimos a confissão de Jenny a Dora de que poderia ter matado o homem. Dora então promete ajudar Jenny e visita a cena do crime para apagar as evidências deixadas por sua amiga. Depois Dora ouve também a história de Maurice, que depois de ser acalmado por esta murmura que é uma mulher tal Dora com quem ele deveria estar. Ela responde de um jeito enigmático: “Não se sinta mal. Eu sou uma mulher esquisita.” A partir daí fica mais do que evidente quem é o verdadeiro alvo da afeição de Dora.
Resumo da ópera até aí: temos três personagens com caracteres bastante distintos a dividirem relações íntimas e os três estiveram separadamente na cena do crime. Logo se desenrola na investigação policial do crime e a trama passa a focar-se nas ações do inspetor Antoine (Louis Jouvet).
É difícil para o espectador decidir por quem torcer, porque Antoine é um bom sujeito, do tipo durão, mas humano. Jouvet interpreta-o bem, com convicção para saber quando é hora de ser o homem da lei e quando é hora de ser compreensível. Aliás, todos os atores cumprem bem seus papéis, sem serem meros arquétipos.
A direção é igualmente boa. Não há ângulos inusuais de câmera ou cenas antológicas como em Psicose (Psycho, 1960) ou nas obras posteriores do próprio Clouzot. Aqui a direção é bastante econômica e adaptada às necessidades do roteiro assinado pelo diretor e Jean Ferry. A narrativa evolui a partir dos dramas dos personagens e de como eles reagem à evolução das investigações.
Não é tão emocionante quanto O Salário do Medo nem tão arrepiante quanto As Diabólicas, mas o filme ainda reserva uma boa dose de suspense e deste diretor é o filme mais sentimental que vi até agora. Sobretudo, Quai des Orfèvres é um filme bonito de se ver. E para aqueles que gostam de um twist no final, garanto que não ficarão desapontados.
Ficha técnica:
Título: Crime em Paris / Quai des Orfèvres;
Direção: Henri-Georges Clouzot;
Elenco: Simone Renant, Suzy Delair, Bernard Blier, Louis Jouvet, Charles Dullin…;
Roteiro: Henri-Georges Clouzot, Jean Ferry;
Cinematografia: Armand Thirard;
Edição: Charles Bretoneiche;
Música: Francis Lopez;
Produção: Roger De Venloo, Louis Wipf;
Ano: 1947;
País: França;
Gênero: Suspense.
